sábado, 6 de julho de 2013

Infância calcinada e o mundo sem Esperança

Não adianta nada evitar o realismo cotidiano e banal com a espera de situações ideais, dum emprego apostólico, duma ocupação heróica, duma noiva total e perfeita, porque é bem possível que essas coisas não existam. Aliás, essa idéia de aguardar coisas que pesem, que valham realmente a pena de nosso esforço, é uma impertinência e uma presunção. Caíram nisso homens muito piedosos como aqueles que São Cipriano exortava: atacados duma prosaica peste, achavam ruim porque já haviam decidido, cada um no seu foro íntimo, que queriam ser mártires... Esse escrúpulo de levar a sério um orçamento ou um horário, essa preocupação de ser despreocupado, também traduz um desejo de ser cada um o próprio autor dos acontecimentos ou então uma displicência boêmia em relação ao fluxo de fatos reais que nos vêm ao encontro cada dia. [...]
O cristão tem a promessa de Deus e espera. Ora, o pai de família espera a visita dum amigo que tarda, não deverá decerto andar dum lado para outro, à toa, sob pretexto de impaciência e de amizade, nem consentir que os filhos e a mulher fiquem tontos entre o portão e o telefone. Ele deverá "providenciar todas as coisas" e a esposa deverá trabalhar com paciência e alegria para que o amigo encontre a casa adornada e cada coisa pequenina em seu lugar. [...]
Esperar, para o cristão, é providenciar e preparar para o hóspede, é ser vigilante como um soldado, humilde como a dona-de-casa, confiante como a criança. Anos atrás as crianças tinham um sentido vivo da esperança, porque gostavam muito de brincar de soldado e de dona-de-casa que recebe visitas, mas o mundo de idéias avançadas e mecanizadas vai perdendo essas duas noções fundamentais, a do soldado e a do hóspede. A visita hoje é um susto que se prega nos outros; é um aparecer de repente com gritos; é um acidente resolvido por uma guinada na direção de um automóvel. Em Copacabana, por exemplo, há casas em que não se põe mais a toalha na mesa: o hóspede inopinado é conduzido para diante duma frigidaire onde se improvisam uns sanduíches americanos com um pão pedido às pressas pelo telefone. Os soldados também vão deixando de existir com sua antiga galhardia para dar lugar a uns técnicos eficientes do manejo de certos instrumentos de engenharia. O ludus infantil tenta em vão se apegar a esses tristes modelos de vida, e a Esperança cristã encontra nos corações dos adultos, cada vez mais, a raiz na nossa infância quase calcinada.

Gustavo Corção - A Descoberta do Outro

terça-feira, 2 de julho de 2013

Minha infância

Não tenho experiência pessoal de que seja uma infância socialista: nunca andei no colo do Estado, não fui cuidado por técnicos, nem apascentado por mocinhas de frivolidade pedante. Não conheço no meu tempo esse tom de voz convencional de falsa maternidade, essa meiguice eficiente que se ouve no rádio,durante o quarto de hora infantil, ou nas escolas municipais da nova pedagogia. A voz que eu ouvia era franca e forte, voz de mãe cheia de filhos que sabia distribuir os tapas necessários, cortar o pão e providenciar os agasalhos.

Minha infância foi livre e feliz, em casa grande, casa antiga pintada de azul-claro, com platibandas enormes e bolas de vidro no jardim. Aprendi a tabuada e a leitura decorando e soletrando, encostado em minha mãe, pequenino e confiante, sem interesse, sem a menor vontade de aprender. Era bom soletrar a cartilha com o pensamento alheio, com vontade de acabar para ir ver a galinha no chôco ou continuar um morrinho de terra.

Não havia entre a cartilha e a galinha a relação de cumplicidade que mais tarde me seria inculcada nas primeiras lições de coisas, quando o mundo começasse a girar em torno de minha adolescência. Mas entre todas as coisas havia uma imensa solidariedade porque tudo estava na casa de meu pai.

Felizmente minha mãe não tinha lido Rousseau, que a teria talvez convencido de me mandar aprender com a galinha. Não conhecia também os espantosos resultados da Montessori com seus anormais; não procurou me incutir o interesse pela tabuada nem me convenceu de estar começando naqueles dias minha cidadania. Meu soletrar foi livre e gratuito, como a galinha, como as bolas de vidro no jardim. Cada coisa tinha nesse tempo  o seu próprio direito de existir. Por isso, o mundo era muito amplo e muito seguro.

O tempo também não existia; ou era uma espécie de dança de todas as coisas. E quando as pessoas dançavam, não deixavam de ser elas mesmas. Quando o teto vinha ao meu encontro, oscilando, crescendo, também não deixava de ser teto. O tempo era a regra dum brinquedo enorme: fazia meu pai sair e depois fazia-o voltar. Aliás, o mais certo é dizer que a regra vinha de meu próprio pai. Tudo era arbitrário e por isso mesmo havia uma enorme segurança em volta de mim; porque os árbitros eram pai e mãe. Não sentia nenhuma injustiça comas contradições dos adultos, mas um vexame de não ter aprendido uma certa regra, como nos brinquedos de pique e de roda.

Nas horas de estudar, eu subia para uma saleta pequenina e pegava a cartilha. Minha mãe não se sentava no chão da nova pedagogia para me ensinar números jogando naionente, mas dizia que hora de estudar era hora de estudar. E tinha imensa razão, porque tudo tem seu tempo. Eu poderia ter aprendido com melhor método, ter economizado alguns dias na leitura daquela frase "O viúvo viu a ave", ou ter aprendido uma frase mais clara; mas não ficaria sabendo que cada coisa tem seu tempo. Tempo para brincar; tempo para estudar; tempo para comer. E tempo para rezar era na hora de dormir.

 - Então,vamos rezar. Bicho é que dorme sem rezar. Padre Nosso...

Gustavo Corção - A Descoberta do Outro