terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Discurso de Plínio Salgado no Centenário da Batalha de Riachuelo

O sopro suave da Caridade cristã em Cronin

Nós a havíamos visto pela primeira vez em Loughram Street, apanhando água num chafariz público com uma criança nos braços – um robusto bebê de nove meses, amarrado por um xale esfarrapado aos seus ombros franzinos. Seu nome era Rose Donegan e devia andar pelos quatorze anos. Tinha cabelos ruivos e profundos olhos azuis que não sei por que pareciam imensos em seus rostinho sério. Três outros garotinhos, cujas idades variavam entre cinco e nove anos, penduravam-se à sua saia e uma certa semelhança de traços bem como o mesmo tom vermelho de seus cabelos revelavam serem todos Donegans.

O contraste entre a sujeira do seu aspecto e o intrépido brilho de seu olhar, despertou-nos, a mim e meu amigo Hugh, a curiosidade. Começamos por dar-lhe bom dia e, depois de algum tempo, essa saudação arrancou-lhe um grave e tímido sorriso de resposta. Aos poucos – pois sua reserva não era fácil de vencer – fomos nos tornando amigos.

Soubemos então que Rose, os três garotinhos e o Michael, o pequerrucho de braço, tinham perdido a mãe havia oito meses. Viviam com o pai, Danny Donegan, num porão do superlotado viveiro humano de Loughram Street. Danny, que trabalhava de vez em quando nas docas, era um sujeito fraco mas de índole extremamente bondosa. Falava macio e vivia cheio das melhores intenções, gastando todavia a maior parte do seu tempo e do seu dinheiro ali perto mesmo, no Shamrock Bar. Assim, pois, racaira sobre os ombros de Rose o pesado encardo de cuidar da casa, mantendo limpos e arrumados os seus dois únicos cômodos, tratar do pai vagabundo, salvar o melhor que podia os restos do que ele ganhava, cozinhar e olhar as crianças.

Embora Rose dedicasse grande afeto a todos, tinha por Michael verdadeira adoração. Nas tarde de sol, quando o levava até os arredores do Phoenix Park, quase não podia caminhar com o peso do menino, mas nem por isso desanimava. Nada a desanimava. Quando a víamos passar com ar resoluto pela calçada suja e apinhada de gente, desempenhando algum serviço de rua, pechinchando com o açougueiro para obter por menor preço um pedaço de pernil, ou persuadindo o padeiro a fiar-lhe um pão extra, maravilhavamo-nos diante da sua têmpera. Rose não era cega aos olhares que lhe lançavam. Possuia a precocidade de entendimento própria das crianças criadas em cortiços – uma compreensão absolutamente natural dos rudes mistérios da vida mesclada a uma sublime inocência. Aqueles grandes olhos pensativos a brilhar em seu rostinho sujo encerravam a sabedoria de todos os tempos. Mais do que isso, porém, havia neles uma inesgotável fonte de amor.

Nosso interesse inicial por essa menina transformou-se gradualmente em profunda preocupação. Sentíamos que devíamos fazer alguma coisa por ela e, tendo por acaso descoberto que o seu aniversário estava próximo, compramos-lhe algumas roupas numa loja de O’Connell Street e demos ordem para que o pacote lhe fosse entregue. Era bom imaginá-la metida num vestido de lã bem quente, com sapatos novos, meias e tudo o que lhe faltava.

Passamos alguns dias sem vê-la, mas regozijavamo-nos só de imaginá-la decentemente trajada, indo toda orgulhosa à Missa de domingo, os sapatos novos a ranger triunfalmente ao longo da nave. Todavia, quando a vimos na segunda-feira seguinte, com grande espanto verificamos que continuava maltrapilha como sempre, levando às costas o irmãozinho envolto no mesmo xale esfarrapado.

- Onde estão suas roupas novas? Perguntou-lhe Hugh.
Ela corou até à raiz dos cabelos e respondeu:
- Foram os senhores?
E após uma longa pausa, sem olhar para nós, acrescentou simplesmente:
- Estão empenhadas. Não tínhamos nada em casa, Michael precisava tomar o seu leite.

Ficamos a olhá-la em silêncio. Iria ela sacrificar-se sempre, renunciar a tudo o que era seu em favor daquele irmãozinho? Só se eu não pudesse impedi-lo. No dia seguinte fui procurar o padre Walsh, vigário da paróquia a que pertencia Loughran Street.

Sua fisionomia iluminou-se quando lhe falei de Rose, e depois que fiz o meu pedido meditou por alguns instantes e sacudiu a cabeça em lenta aquiescência.

- Poderíamos levá-la para passar uns tempos no campo. Tenho uns amigos... os Carrolls... gente muito boa... em Galway. Mas o senhor fica encarregado de persuadi-la.
E com um sorriso de pena acompanhou-me até à porta.
- Ela é uma perfeita mãezinha, acrescentou. É essa a força que lhe enche a vida.

Uma semana mais tarde, após uma troca de cartas dirigi-me cheio de determinação para Loughran Street. As crianças estavam sentadas em torno da mesa enquanto Rose, com uma expressão preocupada, cortava em fatias os restos de um pão.

- Rose, disse eu, você vai viajar.
Ela ergueu os olhos para mim sem compreender, afastando uma mecha de cabelo que lhe caíra sobre a fronte contraída.
- Para Galway, prossegui. Apenas por quinze dias. Para uma granja, onde você não terá nada que fazer além de dar comida às galinhas, correr pelos campos e beber litros de leite.
Por um momento a esperança estampou-se em seu rosto, mas logo se apagou. Ela meneou a cabeça.
- Não, tenho que cuidar das crianças... e de papai.
- Já está tudo arranjado. As enfermeiras cuidarão deles. Você precisa ir, Rose, pois do contrário acabará adoecendo.
- Não posso, teimou. Não posso abandonar meu irmãozinho.
- Essa desculpa não serve. Você poderá levá-lo.

Seus olhos cintilaram. Mais cintilantes porém se tornaram quando no dia seguinte a metemos no trem com o irmãozinho. Quando a máquina arrancou, ela embalava o menino com os joelhos magros e murmurava-lhe aos ouvidos:

- Você vai ver as vaquinhas, Michael...

Causavam-nos um alegrão as notícias que os Carrolls nos mandavam deles. Rose estava engordando e ajudava nos trabalhos da granja. Seus próprios postais escritos com dificuldade deixavam transparecer uma felicidade que jamais conhecera antes – e terminavam invariavelmente com um entusiasmado relato de como Michael gostara da vida de campo.

As duas semanas passaram depressa. Quando estavam para terminar, estourou a bomba. Os Carrolls desejavam adotar Michael. Eram uma casal idoso, sem filhos, e de posses. Tinham-se afeiçoado ao menino e poderiam oferecer-lhe vantagens muito maiores do que as que poderia desfrutar em seu lar.

Danny, naturalmente, achou a oportunidade “estupenda”. Mas era preciso considerar Rose, e a decisão ficou dependendo dela. Nenhum de nós soube qual fora essa decisão, ou quanto lhe custou tomá-la, senão depois que voltou... sozinha.

Alegrou-se ao rever os outros irmãos e o pai, mas durante todo o trajeto da estação para casa manteve-se calada e retraída.

- Foi para o bem dele, suspirou afinal. Eu não podia servir de obstáculo à sua felicidade.

Chegados que fomos a Loughran Street, controlou-se e reassumiu o seu antigo posto. Tornara-se até mais consciente do que antes. Instado por ela, Danny assinou o termo de adoção. Parecia regenerado, mas não havia garantia alguma de que continuasse assim; todavia, enquanto não bebeu e se conservou no emprego, Rose pôde retirar do prego as coisas que empenhara, de maneira que os dois cômodos de porão tomara jeito de casa. Em alguns sábados conseguia até guardar alguns xelins na lata de chá improvisada em cofre que ficava sobre a lareira.

Chegavam boas notícias sobre os progressos do pequerrucho. Os pais adotivos de Michael não poupavam esforços para fazê-lo feliz: já se referiam ao menino como se fosse realmente filho deles. Mas eis que uma bela manhã chega uma carta diferente. Michal apanhara uma pneumonia. Rose ficou olhando para a carta com as faces lívidas e os lábios apertados. Depois encaminhou-se como uma autômata para o cofrinho de lata que estava sobre a lareira e contou o dinheiro da sua passagem.

- Vou para junto dele.

Pôs de lado todas as objeções. Pois não sabiam que ela conseguia qualquer cosia do menino – fazia-o aceitar os alimentos quando tinha febre e tomar os remédios quando estava inquieto? Bastava afagar-lhe a cabecinha e ele adormecia. Com uma expressão fixa, preparou-se para a viagem, arranjou com uma vizinha para cuidar dos outros irmãos e foi de bonde para a estação.

Nessa mesma noite, na granja dos Carrolls, não houve quem a demovesse do propósito de ser a enfermeira de Michael. Por intermédio do padre Walsh foi que viemos a saber depois o que se passou.

A moléstia fôra grave. O pior era a tosse. Com o braço servindo de apoio à cabecinha de Michael, indiferente ao perigo a que se expunha, Rose amparava-o até que os acessos passassem. Desvelou-se dia e noite junto dele.

Por fim a crise cedeu; disseram-lhe que Michael ia ficar bom. Ela ergueu-se do seu posto à cabeceira do doentinho e comprimiu a fronte com as mãos. Estava tonta.

- Agora posso descansar, murmurou sorrindo. Estou com uma dor de cabeça tão horrível...

Apanhara a doença de Michael. Mas o germe não lhe atacara os pulmões. O que aconteceu foi muito pior. Teve uma meningite pneumocócica e não chegou a recuperar a consciência. Como já disse, Rose tinha apenas quatorze anos.

Muitos anos depois fiz uma visita ao túmulo de Rose. No cemitério deserto, de chão úmido e turfoso, manso vento oeste soprava dos lados da baía de Galway, trazendo das habitações rurais caiadas de branco dos arredores, o cheiro acre da turfa queimada – o hálito, a própria alma da Irlanda. Não havia coroas sobre a sepultura rasa coberta de mato, mas, semi-oculto na relva, um pezinho de roseira-brava ostentava na ponta da haste espinhenta uma única e singela rosa branca. E de súbito, rompendo as nuvens cinzentas, o sol apareceu, iluminando com todo o seu esplendor a alva flor e a pequena lousa branca onde se lia o seu nome.

Pelos Caminhos de Minha Vida - A. J. Cronin

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Dois Pernambucanos em Alcácer Quibir


O povo português e seu herdeiro, o do Brasil, consideram agosto mês de desgosto e sua 1ª segunda-feira dia aziago, porque a 4 de agosto de 1578, numa segunda-feira, se travou nos areais de Marrocos a famosa batalha de Alcácer Quibir ou de Kass-el-Kebir, cujo resultado foi a derrota e morte do rei de Portugal, D. Sebastião, o Desejado, caindo seu reino com todos os domínios ultramarinos, inclusive o Brasil, sob o poder da coroa espanhola.

Desde uma década mais ou menos após o descobrimento do Brasil andavam os marroquinos envolvidos em contendas civis, nascidas de ambições de rivalidades dos seus príncipes. Uma delas levara à África as armas portuguesas. Reinava, então, em Marrocos a dinastia dos Sáditas ou dos Xerifes, como era mais conhecida. Em 1557, subiu ao trono Mulei Abdalá, cujos irmãos, temendo sua crueldade, fugiram para a Argélia. Eram três: o mais novo Mulei Ahmede voltou mais tarde à terra natal e nada lhe aconteceu; o mais velho foi assassinado por sicários mandados ao seu encalço e o do meio, Mulei Abde Almelique, que as crônicas lusas apelidam Mulei Maluco, destinado a espantoso fim, foi quem deu de certo modo causa àquela batalha, provocando a intervenção do monarca português na crise da sucessão do Império Xerifiano.

Foi o caso que Mulei Abdalá, ao morrer em 1574, designou como seu sucessor, contra as praxes seguidas na ordem sucessória da dinastia, um filho que tivera duma escrava negra Mulei Mohamede Almotanaquil, designado pelos cronistas lusos como Mulei Hamet. Isto desgostou muitos xeiques das tribos marroquinas, o que o irmão do xerife morto. Mulei Maluco, quis aproveitar. Tendo servido com brilho nas campanhas dos turcos, deu o Sultão ordem ao rei de Argel para ajudá-lo e prestigiá-lo. Assim, levantando janízaros e ginetários argelinos, o Maluco invadiu sua pátria pela fronteira da Argélia, venceu o tio e entrou triunfante em Fêz. Todavia, refugiado na cidade de Marrocos, Mulei Hamet decidiu continuar a luta.

Em face da mesma, pensou D. Sebastião em intervir na questão marroquina, procurando entender-se a propósito com o poderoso rei de Espanha, Filipe II. Seu grande argumento era o poderio otomano estendido até Marrocos, graças a Mulei Maluco, protegido do sultão de Constantinopla, constituindo isso grave ameaça à cristandade peninsular.

Conseguido esse apoio, levantou o dinheiro que pôde, organizou uma expedição e entreteve entendimentos com marroquinos influentes. Em fins de 1577, o xerife destronado Mulei Hamet acolheu-se à proteção dos espanhóis e correspondeu-se com D. Sebastião, que o aprazou a esperá-lo em África. O exército com que o Rei se meteu nessa temerária aventura compunha-se de 2800 mercenários tudescos, valões e holandeses, 2 mil castelhanos, 600 italianos enviados pelo Papa, um Terço de Aventureiros em que se incluíam jovens fidalgos lusos e o resto de portugueses, ao todo 17 mil combatentes, dos quais 1500 a cavalo, não se contando uns 8 mil indivíduos que faziam ofício de gastadores, carreteiros, pajens, armeiros, cozinheiros, criados, escravos e rascoas ou chinas de tropa. A artilharia numerava 36 peças de vários calibres.

Esse exército desembarcou em Arzila entre 12 e 28 de julho, chegou a Almenara de 30 para 31, e à ponte de Alcácer, além do sobreiral de Larache, sobre o rio Mocazin, a 3 de agosto. E, ao amanhecer da segunda-feira 4, defrontou as tropas do Xerife na planura de Alcácer Quibir.

Contra eles avançou dividido em três corpos de infantaria tendo ao centro o Terço dos Aventureiros, comandado por Álvaro Pires de Távora, ladeado por mangas de arcabuzeiros de Tânger. À direita, os tudescos. À esquerda, espanhóis e italianos. Ao centro, a bagagem e os não combatentes. Nas alas e coice, os terços lusitanos. Nas costaneiras, as cavalarias. O Xerife formara sua gente à maneira turca, em meia-lua, com infantaria ao centro, cavalaria e infantaria montada nas alas. A sua artilharia, 26 peças, esperava o ataque cristão emboscada numa dobra do terreno, camuflada com ramos de árvores.

A batalha travou-se ainda pela manhã e durou mais ou menos 6 horas, iniciada por uma preparação da artilharia marroquina a que só tardiamente e mal respondeu a portuguesa. Depois, foi o choque em que logo se distinguiu o bravo Terço dos Aventureiros, que entrou pelas formações inimigas com violência sem par, detendo-se, porém, à voz inesperada Ter! Ter! até hoje não explicada convenientemente. Cercados, vendem caros as vidas. Pronuncia-se, então, o desbarato do exército. Os alemães são acossados e dizimados, a artilharia tomada e os terços da retaguarda combatem frouxamente. No meio da grande confusão que se estabelece, o Rei luta como um paladino e tomba com honra, enquanto suas tropas fogem, rendem-se ou são chacinadas pelos infiéis. Esse fim deu origem à lenda do Encoberto, do rei misterioso que um dia voltaria ao seu reino. E o Sebastianismo foi a esperança dum salvador e duma salvação um dia entre os dias...

Não escapou nenhum dos três personagens reais que participaram dessa nefasta batalha. Pereceu em combate de armas na mão o soberano português. Morreu, ao finda a pugna, o xerife marroquino, que a ela comparecera numas andas em precário estado de saúde. E Mulei Maluco, ao fugir da derrota, afogou-se, tentando atravessar o Mocazin. Seu corpo foi esfolado pelos mouros e a pele cheia de palha, sendo transformado em pavoroso espantalho.

Até aqui todos que lêem um pouco de História sabem. Agora o que poucos sabem é que nessa pugna infeliz, de tão graves consequências para o destino de Portugal e do Brasil, estiveram presentes e se bateram como leões dois ilustres brasileiros. Eram eles os dois irmãos pernambucanos, naturais de Olinda, Duarte e Jerônimo de Albuquerque Coelho, ambos filhos do grande Duarte Coelho, primeiro donatário da Capitania de Pernambuco e fundador daquela vila.

Jorge de Albuquerque Coelho comandava uma coluna de cavaleria. Em plena batalha, vendo o Rei tombar do cavalo derrubado por uma bala inimiga, embora gravemente ferido, desmonta e lhe entrega o seu salvando-o, assim, de ser logo morto ou aprisionado. No decurso da pugna cai com seu irmão Duarte, também ferido, prisioneiro dos infiéis. Este, que era o primogênito, não resistindo às consequências dos ferimentos e às agruras do cativeiro, faleceu no fim de dois anos, em 1580, justamente quando Jorge era resgatado a peso de ouro, aleijado das pernas e andando de muletas.

Duarte de Albuquerque Coelho era o segundo donatário da Capitania de Pernambuco. Jorge, seu irmão, mais moço, por sua morte foi o terceiro. Era homem de grande bravura e sangue frio. Em maio de 1565, viajando de Olinda para Lisboa na nau "Santo Antônio", depois de porfiado combate com um pirata francês, rendeu-se e foi largado no mar com seu navio num temporal medonho. Conseguiu animar os companheiros, vencer os elementos e, apesar de longos dias de fome e sêde, chegar finalmente a Cascais. Tinha, como se vê, um grande aprendizado de vicissitudes. E, além de herói, era escritor, tendo sido celebrado por um poeta, Bento Teixeira Pinto, na "Prosopopéia".

Deixou Jorge de Albuquerque Coelho, como seu pai, também dois filhos ilustres: Duarte de Albuquerque Coelho, Marquês de Basto, primeiro Conde de Pernambuco e quarto donatário dessa capitania, autor das Memórias Diárias da Guerra do Brasil, e o grande Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, general das forças brasileiras contra os holandeses na guerra de Pernambuco e general das forças portuguesas contra os espanhóis na guerra da independência ou restauração de Portugal.

São desta sorte as grandes figuras da brava gente pernambucana.

Gustavo Barroso - Segredos e Revelações da História do Brasil

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Namoradinhos


Poucas coisas me comovem mais que ver um casal de namoradinhos andando na rua de mãos dadas. O mundo, para eles, não existe: existe o outro, existe o sorriso, a mão, o olhar, as palavras sem sentido denotativo, mas com valor infinito pelo amor que conotam.

A cada geração a mesma mágica se repete; afinal, é dela que vêm as novas gerações. A cada geração, como se fossem o primeiro casal, rapaz e moça arquetípicos se encontram, apaixonam-se, dão-se as mãos e esquecem de todo o resto. Aconteceu com meu bisavô, com meu avô, comigo. Há de acontecer com meus filhos, netos e bisnetos. Faz parte da natureza humana. 

E nada, nunca, muda: cada casal se acha o primeiro, vive aquele amor como se fosse o único, como se, dando-se as mãos, voltassem à inocência primeva. Cada casalzinho ficaria chocado ao perceber que não, não são os primeiros. Que não, não é em nada diferente o que ocorre com eles e o que se vislumbra em alguma foto amarelada do avô e da avó. 

Para eles, nada há de mais belo que o outro, aquele ser que em si encerra o mundo. Minha avó, sempre ferina, dizia que “mulher não casa com carrapato porque não sabe qual é o macho e qual é a fêmea”. Mas, na verdade, não é só à mulher que o ditado se aplica, mas ao ser humano. Quantos casaizinhos vemos em que aquilo que qualquer outra pessoa qualificaria de feiura transmuta-se alquimicamente na mais pura beleza ao ser filtrado pelos olhos nublados do observador apaixonado?! No amor, o amado é sempre lindo e a amada é sempre divinal. 

É uma inserção na eternidade, sempre repetida, sempre nova, que ocorre a cada nova geração. O casalzinho que passa não é apenas novo, nem meramente antigo: é, ao mesmo tempo, ridiculamente jovem – basta ver as espinhas que eles não percebem no rosto do outro! – e pateticamente antigo, como provam os gestos, os balbucios pré-verbais, o fechamento num universo que parece ser anterior à própria Criação. É uma dessas coisas que mostram como o homem, decididamente, é um ser único, com os pés no chão e a cabeça no Céu. Capaz de viver no tempo algo completamente atemporal. 

E é nesta repetição, constante ao longo dos séculos, que a natureza humana se reafirma, se apruma e continua. Naquela beleza eterna, fechada ao resto do mundo. Naqueles apelidos ridículos, naquela dependência patética de outra criatura que nos cega à razão, nos diminui e, assim, nos eleva às raias do eterno em que nos insere. Naquele casal de namoradinhos que vai ali, de mãos dadas, atravessando a rua sem olhar. Eles são eternos. 

Carlos Ramalhete

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Mozart por Gustavo Corção


A 27 de janeiro de 1756 — faz hoje duzentos anos — nascia em Salzburgo, de uma pequena e modesta família, o menino que teria na certidão de batismo o nome de Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart. Nasceu numa casa onde se vivia da música. Aos três anos de idade, como se houvesse diligência de bem aproveitar os poucos que a sorte lhe reservava, manifesta os primeiros sinais de vivo interesse pelas lições de cravo de sua irmã. E bem depressa se vê que não se enganavam os pais na apreciação desse interesse. O menino tem fome e sede de música. Aos cinco anos compõe um minueto em sol maior; aos seis, toca violino e cravo na corte de Viena, onde se encanta pela princesinha Maria Antonieta que trinta anos mais tarde marcará, com a cabeça decepada, o fim do século e do regime. Com oito anos, Wolfgang Amadeus Mozart domina com mestria o violino, o clavicórdio e o órgão; rege concertos; compõe a primeira sinfonia, em mi maior, e escreve a primeira ópera Apollo e Hyacinthus.

Tornou-se trivial falar da prodigiosa precocidade de Mozart. História sabida, mil vezes glosada, tornou-se para nós um fato entre tantos, uma singularidade entre as muitas que a história do mundo registrou; e hoje precisamos fazer um esforço de imaginação, mobilizar capacidades esquecidas, esfregar dormências da alma, para conseguirmos a maravilhada admiração que tal prodígio merece. E antes de mais nada convém lembrar que a precocidade de Mozart difere essencialmente daquela que tantas outras crianças, com o mimetismo próprio da infância, revelam nos concertos públicos. A precocidade de Mozart é criadora. Nela se encontra a inconcebível conjugação da impressividade infantil com a expressividade varonil da obra de criação. E é esse incrível conúbio, a meu ver, que explica a misteriosa e riquíssima transparência da obra de Mozart, e que ao mesmo tempo explica a combinação, a dialética interna dessa obra de continuação e de renovação. A precocidade de Mozart não foi um mero acidente de sua carreira, nem apenas uma espécie de compensação da outra que lhe viria pela tuberculose. Foi também, e sobretudo, o elemento integrante da substância de sua música. O “Réquiem” encomendado por um misterioso desconhecido, pouco antes de sua morte, a sinfonia em sol menor n° 40, e o admirável concerto para clarineta e orquestra, em lá maior, só podiam ser escritos por alguém que acordara muito cedo para a música, isto é, por alguém que tivesse feito a extraordinária experiência de uma infância criadora. A infância, quando se materializa no adulto, quando permanece como um quisto, dá na neurose; mas quando se dilui, quando se espiritualiza, dá nessa perenidade de transparências que se encontram na música de Mozart. E assim, o menino que tão depressa deixa de ser menino pela mestria, será sempre menino pela pureza.

Nascido numa família de músicos, numa casa onde se respirava melodias e onde até o canário cantava em sol maior — o tom de sua primeira composição — dir-se-á que Mozart tinha a seu favor todas as circunstâncias para se inserir, para ser músico. Tinha-as efetivamente, mas para ser um músico que continua o ofício do pai e à maneira do tempo. Em qualquer outra criança que não se chamasse Wolfgang Amadeus Mozart, essas condições favoráveis produziriam uma fixação e dariam apenas mais um ameno compositor do século XVIII. Mas nosso Petit Prince, gênio infantil, segue as lições do pai ultrapassando-as sem sentir; imita sem saber que está renovando; obedece sem perceber que está dirigindo; adapta-se sem consciência da revolução que inicia. Ninguém é mais século-dezoito do que esse menino que havemos de ver sempre, como viu Goethe, com os cabelos empoados do ancien-régime; mas ninguém, nem a própria Maria Antonieta na guilhotina, marcou mais nitidamente o limiar dos tempos modernos. Continua Bach e prenuncia Beethoven, mas não se pode dizer que seja um elo, uma transição, um intermediário, porque nenhum outro depois dele conseguirá ser mais integralmente completo, ser mais soi-même, do que Mozart foi Mozart.

A disjunção de personalidade, que o romantismo trouxe, e que faz Cocteau dizer por blague que “Victor Hugo est un fou qui se croit Victor Hugo”, não se encontra em Mozart que é sempre idêntico a si mesmo na imensa variedade de sua obra.

A composição de docilidade e de renovação, o paradoxo da infância criadora, e até direi o momento histórico que viveu, entre o regime protecionista da aristocracia e a ânsia de uma arte desatada, tudo isso marcou a vida e caracterizou a substância de sua música. Uma fórmula nova que estava em germe na obra de Haydn será a característica da composição e do desenvolvimento mozartiano. Já foi explicada essa fórmula em termos de dualismo masculino-feminino dos temas em contraste. A mim me ocorre o termo “complementariedade” para definir o caráter dialético da composição mozartiana.
A música do imenso Bach tem o caráter de exposição, de lição, de homilia. O incomparável mestre de Eisenbach ensina, propõe, expõe. Sua obra nos deixa sentir a hierarquia. Bach compõe ex-cathedra.

Em Mozart, ao contrário, aparece a música-diálogo, a música-composição, a música-colóquio. E a idéia que deixa, ainda que se expanda em grandiosidades, é a de convivência e de intimidade. Sua obra é uma ambiência, uma vida em comum, uma conversatio musical. Muitos críticos já salientaram a predominância do cantavel na obra de Mozart. Arrisco-me a introduzir um pequeno retoque nessa apreciação dizendo que é na palavra-musicalizada, na linguagem dialogada, no colóquio de idéias sutilizadas em música que reside a característica essencial da obra de Mozart. O contraste de temas ainda não é conflito, como será em Beethoven, nem incitamento à ação, como em Wagner. É diálogo. Conversação. Comunicação dotada de misteriosa pureza e desconcertante simplicidade.

Realmente desconcertante é a simplicidade do desenvolvimento mozartiano que parece repetir-se e que nunca incide no lugar-comum da falsa simplicidade, o da simplicidade que vem da pobreza. A transparência de Mozart vem da ordenação suprema que dá aos cristais o brilho translúcido. O “ramo de Salzburgo” de que se serve Sthendal para descrever a quinta fase do nascimento do amor, nunca se cristalizou tão claro e tão cintilante como na obra desse menino que há duzentos anos nasceu em Salzburgo.

E é por causa dessa substancial e riquíssima simplicidade, e por causa do essencial caráter de diálogo, apaixonado e contido, emotivo e discreto, contrastado e cordial, que a música de Mozart resiste às interpretações que vão do comedimento “triplesec” que o crítico Nathan Broder assinalou na execução de Walter Gieseking, até a imoderação temperamental que o mesmo crítico atribui a Lili Kraus. “But the ideal Mozart piano performances”, diz ainda Nathan Broder, “in this imperfect world, are still something we shall have to dream about”.

Também eu, apesar de leigo e bárbaro, continuo a sonhar com uma interpretação ideal do maravilhoso concerto para piano e orquestra, em si bemol maior (K 595), o último que Mozart compôs, doente, triste, esmagado pela miséria, guilhotinado em movimento lento pela estupidez do mundo e pela transição dos regimes.

Celebrei o segundo centenário de Wolfgang Amadeus Mozart ouvindo sozinho, com peso na alma, esse concerto que recentemente me deram em LP tocado por Ingrid Haebler. Tecnicamente mais bem gravado do que os meus velhos discos de Schanabel, Ingrid Haebler, sobretudo no larghetto, que executa quase em andante, deixou-me a sonhar, a desejar um “Less imperfect world” em que se possa ouvir, condignamente gravado e condignamente tocado, o vigésimo-sétimo concerto de Mozart. Mas assim mesmo, malgrado a deficiência do interprete, eu pude galgar dois séculos, e estive uma hora a conversar com o luminoso menino de Salzburgo.

Fevereiro, 1956.